quarta-feira, 27 de março de 2013

Dear John

Condenas-me por gostar de música triste. Zangas-te quando o gira discos começa a reproduzir aquele tom sombrio e melancólico. Pedes-me para mudar e eu continuo na poltrona, de olhos cerrados a mover os dedos ao som da música. Tentas acordar-me daquele estado quase catatónico mas és atingido pelo remorso. E se for a última vez que as escuto?
Sinto-te a abandonar a sala. Ouço os teus passos misturados com a melodia. Ouço o teu arfar imperativo na cozinha e a caneca a bater levemente na mesa de pinho. Deixo uma lágrima cair. E mais outra. Era bom que me segurasses a mão por uns momentos. Aquela música fazia-me recordar-te. Os tempos da guerra, da fome... do dia em que fui buscar-te e parecias um rapazinho escanzelado com um sorriso resplandecente que se atirou aos meus braços e nunca mais me largou. Fazia-me lembrar o dia em que o nosso filho morreu. Fazia-me lembrar mil e uma coisas que gostaria de partilhar. Mas tu não gostas de músicas tristes. Associas a momentos funestos e censuras-me por ser insensível. Se fosse insensível, não casaria contigo nem proclamaria todo o amor que avidamente cresce ainda no meu peito.
Ouço os teus passos na minha direção. Já sei. Vais desligar o gira-discos e vais colocar uma daquelas músicas alegres que me faz odiar-te. Vais reclamar por nunca estar de acordo contigo, mas eu não me vou importar. Vou manter-me impávida enquanto te sentas ao meu lado.
A música não parou. Consegues irradiar uma ira saudável, mas resignas-te. Dás-me a mão e beijas-me a fronte. 
Gosto de ti assim, John. Da tua capacidade de me quereres ver feliz quando pouco tempo me resta.

2 comentários:

  1. céus, isto está lindo... maravilhoso! adorei, é que nem tenho palavras... escreve mais e mais coisas destas, é só o que sei dizer! :')

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  2. Este texto está tão lindo *.* Podia até dizer que me surpreendes mas a verdade é que não. Vindo de tudo espero sempre estes textos cheios de sentimento e com um aroma inebriante a enredar as personagens. Adorei!

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"Procura o que escrever, não como escrever." Séneca
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